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O cabinda chegou á rua dos Pescadores, no Rio, alguns minutos depois de terminada a disputa entre Luiz e Americo.
O escriptorio, como já dissemos, era situado no fundo do armazem, e resguardado por uns tapamentos de madeira, que interceptavam a vista do seu interior ás pessoas que entravam.
Americo estacou, e como que teve um estremecimento, vendo surgir o negro. Dissimulou-o, porém, o mais que p?de, e foi encostar-se a uma porta lateral.
--Louvado seja o Senhor! disse o negro, entrando.
--Adeus, cabinda; respondeu Americo docemente.
--O negro quer fallar ao senhor Luiz.
--O teu senhor n?o vem hoje á cidade? perguntou Americo com inten??o.
--O negro n?o sabe.
--Quem te mandou, ent?o?
--A senhora mo?a.
E o cabinda lan?ou a Americo um olhar perscrutador.
--A senhora mo?a? perguntou o mulato, admirado do pouco segredo que o negro guardava da sua miss?o.
--Sim.
--Trazes recado ou carta? acudiu Americo rapidamente.
--O negro traz carta.
--Dá cá, que eu vou entregal-a ao senhor Luiz.
--A ordem da senhora mo?a é só para entregar a elle.
Americo encolerisou-se com a resposta do cabinda, e disse, raivoso:
--Bem se vê que és negro!
--Como o pae de muita gente, respondeu aquelle.
--Patife!...
--O negro é cabinda, e o cabinda é ra?a fina. O mulato é filho de branco e de negro...
Americo sentiu-se altamente atacado, mas enguliu a affronta, que provocára. Teve vontade de atirar logo dous murros ao negro, mas o receio deteve-o, porque tinha diante de si um homem possante, que, embora escravo, era, comtudo, um escravo estimado e querido. No meio da sua ira, e, digamos, da sua cobardia, limitou-se a amea?ar:
--Deixa estar, que o teu senhor saberá que andas a trazer e a levar recados da senhora mo?a, patife!
--O negro n?o tem mêdo.
E o cabinda deu-lhe as costas, e dirigiu-se ao escriptorio, onde lhe parecêra ouvir a voz de Luiz.
Chegou á porta e metteu a cabe?a.
--Licen?a.
--Ah! és tu, cabinda? Entra; acudiu Luiz, largando a penna.
--O negro, meu branco.
--A que vens?
--Trazer isto. Manda a senhora mo?a.
E tirando do bol?o o bilhete de Magdalena, entregou-o a Luiz, esperando com alegria, sorrindo de contentamento.
Luiz sentiu um d'esses abalos, grandemente bello; um d'esses choques, que se sentem sempre que nos chega a m?o a primeira e suspirada carta do objecto do nosso amor.
Que papel aquelle! que thesouro n?o estava alli!
Fossem dizer ao sympathico mo?o que o n?o lêsse! offerecessem-lhe por elle todas as riquezas do mundo!
Recusava, de certo, e recusava sem a minima hesita??o!
Apenas o perfumado papel lhe chegou ás m?os, Luiz abriu-o com uma rapidez vertiginosa, e lan?ou ao contheudo os olhos, mais como quem o devorava, do que como quem o estava lendo.
Era uma soffreguid?o nervosa, natural, exigida até pelas circumstancias.
O cabinda que lhe seguia o menor dos movimentos, que parecia mesmo estar lendo o que se passava no seu intimo, permanecia immovel, suspenso, n'uma contempla??o profunda e silenciosa;
A leitura da pequenina carta foi rapida, mas, n'esse pequeno momento da sua dura??o, Luiz subiu todas as notas da escala harmoniosa dos transportes sublimes da ventura.
O bilhete dizia o seguinte:
?Luiz
?Ainda n?o ha vinte e quatro horas que me deixaste e já n?o posso com as saudades, que me magoam. Vem-me vêr quando poderes e diz-me sempre que nunca hasde esquecer a... tua
Magdalena.?
?P. S. Passei a noite a pensar em ti, e até nas tres horas, que a fadiga me obrigou a repousar, tive sempre, ao meu lado, em sonhos lindos, a tua imagem, que me sorria e eu acariciava.?
Era curta a missiva mas, em compensa??o, eloquentissima.
E Luiz olhou para o negro.
--Ent?o? perguntou este.
--Ah! cabinda! cabinda! exclamou o mo?o com duas grossas lagrimas a brilharem-lhe nas pupillas.
--O branco chora? que tem? interrogou o negro rapidamente, passando do extremo da alegria ao extremo do receio.
--Choro, sim, e olha que nunca os meus olhos verteram lagrimas como estas! S?o de ventura, s?o de felicidade! Cada uma me vale o céo, cada uma é um hymno, cada uma é um poema! Choro, porque nem só a d?r, nem só a tristeza, nem só o infortunio, tem lagrimas. A alegria, quando é t?o grande, como a que eu estou sentindo, tambem as tem, tambem se adorna com ellas. Aquellas s?o amargas, s?o negras, queimam e ferem; estas, que tu vês nos meus olhos, teem o explendor d'um sol formoso, s?o d?ces, porque resumem a essencia d'um nectar suavissimo, d?o vida, porque contéem em si os elementos que a vigorisam! Choro, porque sou feliz, cabinda!
O negro ouviu Luiz n'uma anciedade indiscriptivel. O peito arfava-lhe com violencia; era um mar tempestuoso. Os olhos, os seus grandes olhos, estavam pregados em Luiz. Susteve-se assim em quanto o amoroso mo?o ia fallando, enlevado nos transportes do seu grandissimo affecto. Mas apenas elle acabou, o negro acudiu logo immediatamente:
--E o branco gosta da senhora mo?a?
--Oh! se a amo!...
--Muito?
--Até ao delirio!
--Obrigado, meu branco! obrigado, meu branco! exclamou o negro, beijando phreneticamente as m?os ao mo?o.
--Que fazes, cabinda? acudiu Luiz, commovido, porque traduzia n'aquelles beijos a affei??o do escravo por Magdalena.
--é porque a senhora mo?a é filha do cabinda, e o negro quer a senhora mo?a muito feliz.
--és uma grande alma!
--Mas o mulato...
--Oh! o mulato, acudiu de prompto Luiz, é preciso cautela com elle!
--O cabinda n?o dorme! disse o negro em um tom d'amea?a.
--Bem. Agora vou escrever duas linhas e n?o te demores. Vai logo, sim?
--A minha filha espera, bem sei.
Luiz sentou-se e escreveu as seguintes linhas:
?Magdalena
?Poderei esquecer tudo, mas esquecer-te a ti, nunca. Fizeram-me bem as tuas palavras, E se estás soffrendo a melancholia das saudades que sentes por mim, eu estou entre as nuvens da tristeza, d'esta ausencia, em que nos tem uma distancia t?o curta. Passaste a noite scismando em mim; eu n?o repousei, pensando em ti. Lá havias de sentir no teu seio os echos do meu pensamento. Irei vêr-te quando podér, e crê que te amo, que te adoro muito, muitissimo.
?Luiz.?
O negro partiu.
Quando chegou ao Botafogo ainda Magdalena estava sentada ao piano, para onde a vimos encaminhar-se depois de ter affagado Jorge, seu pae, com dous affectuosissimos beijos.
O piano n?o estava agora gemendo deliciosas harmonias; estava sendo a victima da anciedade, em que Magdalena esperava o cabinda.
As m?os ora corriam rapidas, ora vagarosas, traduzindo claramente os sentimentos e as ideias que se iam succedendo na sua juvenil imagina??o.
De quando em quando, corria á janella a vêr se divisava o negro, mas voltava com a melancholia no rosto, sempre formoso.
O cabinda entrou n'um dos intervallos em que ella tocava.
Apenas elle surgiu á porta da sala, Magdalena deu um grito.
Inundou-lhe o rosto todo o explendor do sol das alegrias. Os olhos faiscaram centelhas de felicidade.
--Ent?o? que trazes? perguntou ella, correndo para o negro.
--Carta do branco.
--Dá cá, depressa, anda.
O negro entregou a carta de Luiz e Magdalena come?ou a lêl-a do mesmo modo que aquelle havia lido a d'ella.
Eram eguaes as impress?es, eguaes as circumstancias, eguaes os sentimentos da occasi?o.
Ao findar a leitura, Magdalena deitou os bra?os aos hombros do escravo, e exclamou, ébria de contentamento, douda d'alegria:
--Ah! cabinda! cabinda!
--Está contente a senhora mo?a?
--Oh! muito! muito! nem tu sabes como eu sou feliz!
--é isso o que o negro quer, porque a senhora mo?a é filha do cabinda!