Chapter 7 No.7

Eram oito horas da manh? do dia immediato, quando Luiz desceu para o escriptorio.

Americo já andava dando as suas ordens para o embarque de uma por??o de saccas de café.

Os dois comprimentaram-se amigavelmente na apparencia, porém, com certa reserva e um pouco de frieza, o que n?o era costume.

Luiz trazia no rosto a pallidez impressa pela vigilia d'uma noite inteira; Americo os tra?os de quem tinha uma ideia a dominal-o.

E os dois socios de Jorge de Macedo dirigiram-se ambos ao escriptorio, situado no fundo do armazem.

Luiz sentou-se a escrever; Americo come?ou a examinar a correspondencia do dia anterior.

Os negros e os outros caixeiros andavam na labuta??o de pesar e ensacar o café.

--Nao sei onde te meteste hontem, desde que nos separamos no Botafogo, principiou Americo, passando a vista de umas para outras cartas.

--Eu é que te n?o tornei a vêr; respondeu Luiz placidamente, sem volver os olhos dos livros, que tinha diante de si.

--Fui ao theatro.

--E eu vim para casa.

--Ah! exclamou Americo com certo ar intencional.

--Nao sei de que te admiras.

--Eu? de nada.

--Esse ah! solto assim...

--Foi natural.

--Talvez, mas nao creio. Parece-me que queria dizer alguma coisa.

--N?o. Já tiveste noticias de Magdalena!

--Noticias de Magdalena?! perguntou Luiz com certo ar d'altiva admira??o.

--Sim; ou n?o deixaste ainda as coisas n'essa altura?

--Gracejas de certo, Americo.

--N?o gracejo, n?o. Ent?o has-de negar que a n?o desfitaste um momento, durante o jantar de hontem, e que lhe fizeste uma confiss?o d'amor, em quanto passeiavas com ella pelo jardim?

---N?o nego, nem affirmo.

--Calas; quem cala consente.

--N?o sei. Mas d'um ou d'outro modo o que me parece é que nada deves ter com isso.

--Outro tanto n?o digo eu.

--N?o sei porque.

--Porque tambem sou pretendente.

--Ah! sim!

--Tu come?aste; veremos agora qual dos dois acabará.

--Veremos.

--Mas porque n?o has-de ser franco comigo?

--Franco em que? e para que? és homem como eu; tens o campo aberto, prop?es a lucta, acceito-a. Se tiver a franqueza de confessar-te que amo Magdalena, retiras? N?o. Ella é que escolhe; se algum de nós lhe convier, o outro já sabe o que tem a fazer.

--E se eu f?r o escolhido?

--Paciencia. E se n?o fores tu?

--Hei-de empregar todos os meios.

--Todos?

--Todos, sim. Os da minha ra?a bem sabes que n?o recuam nunca, e se o ignoras fica-o sabendo agora.

--Em todo o caso diz-me: Queres a mulher pelo dinheiro, ou queres a mulher porque a amas.

--Quero-a por ambas as causas... principalmente.

--Comprehendo.

--Julgas, talvez, que na balan?a da conquista, o prato pende mais para o teu lado? Enganas-te. Nós, os brazileiros, e sobre tudo os que, como eu, teem na face a c?r bronzeada do cruzamento das ra?as, estamos fartos de vêr que os pobret?es dos portuguezes nos venham, de t?o longe, roubar as mulheres e o dinheiro.

Luiz córou e p?z-se d'um pulo em pé.

--Insultas-me! exclamou elle.

--N?o; digo a verdade.

--Dizes a verdade! bradou Luis com ironia. Havia de fazer engulir-te a phrase se n?o conhecesse que fallas despeitado. Fallas dos pobret?es dos portuguezes! Que seria de ti e dos teus se n?o fossem elles! Morriam todos de fome, haviam de ser uns miseraveis! Nós é que trabalhamos, nós é que vos sustentamos, pódes ter a certeza d'isto. Se vos levamos o dinheiro, levamos apenas uma parte do fructo do nosso suor, ficando tu e todos os teus com a outra, com a maior, sem o minimo esfor?o de corpo e de espirito; se nos ligamos com as vossas filhas é por que as merecemos, é porque somos verdadeiramente dignos d'ellas, para n?o dizer que mais honra lhes vai com estas allian?as, do que a nós. Repito; eu queria vêr o que seria de vós se n?o fossem os pobret?es dos portuguezes; de vós, que apenas nascesteis para vos bamboleardes na rêde, indolentes, occiosos, tomando o vosso café e fumando o vosso cachimbo.

--Seja como f?r; n?o discuto nobrezas de nacionalidade. O que te digo é que hei-de empregar todos os meios para conseguir Magdalena.

--E eu affirmo-te que nem um só vingará.

--Veremos.

--Veremos. Declaras-te meu inimigo, atiras-me a luva, levanto-a. Conhe?o agora que has-de usar de todas as armas, desde a hypocrisia, desde o ardil apurado até á infamia, até ao crime refinado. Pouco importa. Hei-de bater-te com a verdade, só com ella te hei-de derrotar. Todavia, recommendo-te prudencia, porque se o meu bra?o se envergonhar de castigar-te, talvez haja quem o fa?a sem que o esperes.

--Amea?as-me?

--N?o; previno-te.

--Pois bem; eu me defenderei.

--Mas de modo que n?o vás ferir aquelle que ainda hontem, além de nos sentar á sua meza como amigos, nos elevou á dignidade de partilharmos da sua fortuna. A lucta é comigo, e só comigo, e se me encontras disposto a combater-te, n?o me encontrarás disposto a tolerar-te a minima coisa que possa, mesmo de leve, ferir Jorge de Macedo, que é hoje meu socio, meu protector e meu amigo, finalmente. Mais ainda, Americo, e isto vale uma amea?a. Magdalena é uma pessoa sagrada para mim, e exijo que o seja para ti. A menor falta de respeito da tua parte, a menor insolencia que lhe dirijas, pagal-a, bem paga, fica certo d'isso. A contenda é comigo e só comigo, ainda uma e ultima vez t'o digo.

--Pouco me importam as tuas amea?as, e respondo a ellas com uma gargalhada.

--Bem sei que vai até ahi o teu cynismo e a tua cobardia.

--Luiz!...

--Cobardia, sim! affirmou Luiz perfilando-se destemido em face de Americo.

Este ia, n'um impeto de raiva, a lan?ar-se ao guarda livros, mas ao vêl-o t?o resoluto, ao vêr-lhe nos olhos a chamma da valentia e a coragem com que o esperava, recuou, deteve-se, e volveu-se, saindo a dizer:

--Ia-me zangando! A occasi?o n?o era propria, e nem mesmo valia a pena. Tenho tempo de desforrar-me.

--Ou de levares uma lic??o que te aproveite, canalha! respondeu Luiz.

Dois minutos depois, já Americo andava ordenando e vigiando o trabalho dos negros e mais caixeiros do armazem, e Luiz continuava escrevendo, como se nada lembrasse a cada um d'elles d'aquella scena que o mulato havia provocado.

No entanto Luiz estava livido, d'esta lividez produzida pela raiva sopeada, e Americo, no meio da labuta??o dos seus subordinados, trazia nos olhos espelhado claramente, o pensamento, o desejo de vingan?a, que lhe avultava no seio.

A imagem, formosa sempre, e sempre sympathica de Magdalena, lá estava, apesar de tudo, interposta entre os dous, a separal-os, a affastal-os, a lan?al-os, sem mesmo ella o pensar, em uma lucta tremenda, que devia necessariamente terminar muito mal para um d'elles, pelo menos.

Luiz via-a com os olhos do seu amor, do seu affecto, da sua virtude; Americo com os olhos dos seus desejos desenfreados de vingan?a, com os olhos da sua ambi??o e do seu calculo.

Magdalena era o centro d'uma linha nos extremos da qual se agitavam convulsivamente sentimentos inteiramente oppostos.

Teriam ambos a mesma for?a?

Qual d'elles tinha de attrahil-a?

é facil prevel-o. A imagem de Luiz já lhe enchia o seio, já lhe havia povoado os sonhos da primeira noite d'amor, aquelles sonhos porque ella passára accordada, solitaria na sua janella, com os olhos cravados na lua, e a alma a sentir o gosto amargo d'uma saudade indefinida.

            
            

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