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O Botafogo é, sem duvida, o mais formoso dos formosos arrabaldes do Rio de Janeiro.
As aguas do vasto Guanabára, que, levemente onduladas, beijam constantemente a fimbria da purpura real da grande cidade, formam, n'aquelle retiro, um como lago de sufficiente superficie, que é orlado, em grande parte da circumferencia, de chacaras magestosas, com vistosos e immensos jardins, vegeta??o opulenta e luxuriante, e explendidos e poeticos panoramas.
Em 1859, Jorge de Macedo, negociante de café em grande escala, e, ao mesmo tempo, abastado capitalista, vivia no Botafogo, em um formoso palacete, circumdado de lindissimos jardins.
Magdalena, a filha do cabinda, n'esta epocha, em que principia a nossa narrativa, tinha desenove annos, e era a fada d'aquelle arrabalde do Rio de Janeiro.
O cabinda estava já entrado em edade, mas vigoroso ainda, e sempre dedicado.
Occupava-se o negro da limpeza das parasitas, que tentavam envadir as aleas dos jardins, e em algum servi?o de Magdalena, sendo, de resto, tractado com toda a estima e amisade.
Magdalena exercia a profiss?o da caridade, n?o cuidando sen?o de dispensar a seu pae os carinhos e os affagos, que havia perdido na sua adorada Beatriz, e em dispensar, dos meios, que lhe abundavam, esmolas aos desgra?ados e pobres.
Jorge dedicava-se aos seus negocios e á felicidade de sua filha, que elle adorava muito, fanaticamente até.
A chacara de Jorge de Macedo era um ninho de delicioso conforto, d'uma belleza invejavel, aonde n?o entrava nunca a sombra d'um desgosto, nem uma nuvem de desharmonia, pequenina que fosse.
Alli, senhores e escravos, brancos e negros, todos viviam em perfeita alegria.
Dos ultimos, porém, o mais querido, o mais estimado, o mais predilecto, sobre tudo de Magdalena, era inquestionavelmente o cabinda.
O negro tambem n?o abusava, e, diga-se a verdade, bem merecia elle de todos, mas de ninguem tanto, como da que elle chamava, e queria, e estimava como filha.
Era por uma tarde de maio, formosa e explendida. O sol doura, ainda, com os seus raios ardentes, os cumes do P?o d'Assucar, da Tijuca, do Corcovado, e a cupula de folhagem variada das arvores gigantes, que vestem os montes em volta do Rio de Janeiro.
Uma brisa, suave, mas tepida, empregnada de perfumes de fl?res e de fructos, perpassa, branda, para o norte, agitando as palmas dos coqueiros e as largas, compridas e pendidas folhas das bananeiras e das palmeiras.
O sabiá trina ainda os seus modilhos deliciosissimos entre a ramagem mimosa d'uma jaboticábeira carregada de fructos, e o beija-fl?r pequenino anda na sua peregrina??o, voluvel sempre, e sempre rapido, deixando beijos nas fl?res brancas do jasmineiro odorifero, ou nas fl?res symbolicas do maracujá, que veste as paredes e os caramancheis dos jardins.
O céo está sereno e limpido.
Ao fundo da chacara de Jorge de Macedo ha um pequeno, mas formoso lago, coberto d'agua, que cáe, em monotono murmurio, da bocca d'um trit?o de marmore fino.
Por traz, encostado ao muro, e voltado ao lago, ha um vasto caramanchel formado de tran?as de cipós e de maracujás, carregadas de fl?res e fructos.
Tem no meio uma meza de granito branco, e em volta assentos inglezes de madeira e ferro, talhados de modo que dêem ao corpo toda a possivel commodidade.
A atmosphera tem a c?r avermelhada dos raios do sol, que desce a esconder-se no mar, e faz brilhar, com c?res phantasticas, as azas, meio diaphanas, das borboletas iriadas, que volitam dos cafezeiros para as goiabeiras, e d'estas para os ramos dos pés d'ara?ás.
Magdalena, a formosa filha do cabinda, jantou e desceu aos jardins; andou só, pensativa, ora alegre, ora rapida, ora vagarosa, de canteiro em canteiro, colhendo pequeninas fl?res, que ia juntando entre as paginas d'um livro, mimosamente encadernado.
Depois, lan?ou, atravez da gradaria de ferro, um olhar ao vapor da carreira, que passava em frente, atravessando o mar para o Rio, volveu-se passado um instante, e seguiu por uma alea, orlada de grandes jambeiros e pés de grumixama, em direc??o ao lago, que jazia no fundo da chacara.
Magdalena era formosa, d'esta formosura, que desperta um culto sincero, uma adora??o em que n?o entra um atomo de sentimentos menos dignos, d'esta formosura, em que se espelha e revela a eleva??o do espirito, a bondade d'alma e a magnanimidade do cora??o.
Aquelles olhos negros, scintillantes, orlados d'uma tenue sombra, e aquelle rosto, t?o expressivamente angelico, estavam mostrando as fl?res de ventura, em que se desataria o seu cora??o e a sua alma, para aquelle que um dia tivesse o supremo goso de a possuir.
Era magestosa no andar, elegante de fórmas, e simples no vestir, mas d'esta simplicidade, que dá realce, que encanta, attráe e enleva.
Como lhe fica bem aquelle vestido alvissimo, de fina cambraia, liso, desguarnecido, apertado apenas na cintura delicada por um grande la?o de sêda azul clara!
Que belleza no modesto penteado dos seus negros cabellos, fartos e setinosos, formando apenas duas compridas tran?as, que, cahindo-lhe pelas costas, se prendem, pela extremidade, uma á outra, ainda por um la?o azul pequenino!
As pombas rolas, que andam aos pares, fallando amores na sua linguagem mysteriosa, levantam v?o com a approxima??o de Magdalena, que as segue depois com a vista, até as perder de todo; mas as borboletas de c?res variadissimas, seguem-a contentes, como se já a conhecessem de ha muito, e andam inquietas, em volta d'ella, ora subindo, ora descendo, como que desejando beijal-a, mas temendo fazel-o, receiando maculal-a.
E ella lá vae vagarosa e muda, lan?ando, de quando em quando, um olhar ás fl?res, que leva prêsas nas folhas do livro, talvez bem querido!
Chegou assim ao lago, debru?ou-se n'elle como procurando vêr os peixinhos dourados, que o habitavam, e foi sentar-se encostada á meza de pedra, n'um dos bancos do caramanchel.
Era expressivo o seu rosto, porque estava desenhando os desejos que sentia dentro de si, e que ella mesma n?o podia comprehender.
Desejos vagos, mysteriosos, indefiniveis.
Conservou-se absorta durante dois minutos, mas como que acordando, depois, d'um sonho que a prendia, tirou as fl?res d'entre as folhas do livro, collocou-as a um lado e p?z-se a lêr alto, com a sua voz meiga, seductora e angelical.
Era um livro de versos, era um livro d'amor, o que ella lia!
E t?o prêsa estava com as phrases, que ia repetindo, t?o scismadoramente como se em verdade as sentisse; t?o distrahida estava de tudo, de todos e de quanto a cercava, que nem ouvia os gorgeios compassados d'um bemtevi, que a sua voz harmoniosa havia desafiado, occulto entre as folhas do ramo d'uma grande mangueira, que quasi se debru?ava sobre o lago.
Chegou a um ponto da leitura e deteve-se suspirando. Depois repetiu ainda a quadra que acabára de recitar, e que dizia assim:
Suspiras, alma, n'um anceio languido? Ninguem te affaga, perfumada fl?r? Ao sol as rosas da manh? desdobram-se, E a brisa affaga-as com carinho e amor!
E fechou o livro e ficou a scismar, com os olhos negros e formosos, cravados, vagamente, n'um ponto do horisonte.
Passados instantes, encostou a face á m?o, como que cedendo ao pêso d'um somno voluptuoso, e por fim deixou cahir o bra?o sobre a meza e o rosto sobre o bra?o, n'uma especie de somnolencia, sonhando, talvez, com as phrases do livro, que havia acabado de lêr, e que, sem duvida, a impressionaram ou lhe fallarám á alma.
As borboletas d'azas douradas, lá andavam em volta d'ella, como que embalando-a nos sonhos, que deviam esmaltar-lhe a somnolencia.
O sol havia-se já escondido o bastante para deixar a terra envolta nas sombras do crepusculo.
E a n?o serem os murmurios da brisa e os queixumes da agua, cahindo no lago pela bocca do trit?o, nada mais se ouvia n'aquella hora da tarde, no retiro aonde repousava Magdalena.
De subito come?ou a fazer-se sentir um leve ruido. Eram as folhas seccas do ch?o, gemendo debaixo dos pés d'alguem, que se aproximava.
Quem seria?
As aves receiosas deixavam os seus asylos, architectados nos ramos das arvores frondosas, ante a passagem do ser que se aproximava.
Um minuto depois, um negro surgia junto ao lago.
Era o cabinda.
O preto deu com os olhos em Magdalena, parou e susteve a respira??o, com mêdo de a acordar, mas nos olhos e nos labios brilhou-lhe logo um sorriso de verdadeira alegria.
--Oh! exclamou elle baixinho, é ella, a filha do cabinda!
E foi, pé ante pé, collocar-se de joelhos, junto á meza de pedra, em posi??o d'onde melhor podia contemplar a sua filha, e assim ficou sem despregar os olhos d'ella.
Era uma loucura aquella affei??o do negro!