/0/10800/coverbig.jpg?v=5376acb3c8ffd8472dff92cf4d98cc3a)
Jorge de Macedo chegou ao armazem pouco depois do negro ter sahido.
Luiz e Americo cumprimentaram-o com a delicadeza devida. O capitalista recebeu-os como socios seus, affavel, risonho, bondoso, mesmo com um tanto da meiguice que o caracterisava.
Jorge de Macedo era um homem sympathico, moral e physicamente. A sua physionomia era d'estas que attrahem á primeira vista, os seus actos modelados em harmonia com a virtude, com a honra, com a probidade, com todo o cavalheirismo, emfim.
Ficára viuvo muito cedo. A necessidade obrigou-o a ser carinhoso com a filhinha, que ficava orph? das dulcissimas meiguices de m?e. A sua alma identificou-se com aquella necessidade e Jorge tornou-se homem sensivel, bondoso e em extremo meigo.
Os seus subordinados eram tratados, n?o como taes, mas como amigos. Os pobres tinham sempre aberta a sua bol?a. Para as grandes emprezas, para qualquer melhoramento do progresso era sempre o primeiro a dar o seu nome e a concorrer com os seus fundos.
Tudo isto o fazia estimado e querido, tudo isto lhe valia um nome honrosissimo, apesar da sua vida retirada, porque Jorge, n?o por systema, mas por indole, apenas tinha e alimentava a convivencia com as pessoas, a quem o ligavam os seus negocios.
Desde que fallecera Beatriz, a sua esposa querida, ninguem mais o viu em um baile, em um club, em uma associa??o recreativa.
Magdalena resumia-lhe todos os encantos, todas as distrac??es, todos os prazeres.
Com ella, com a sua adorada filha, passeiava elle muitas vezes, n'aquella alegria d'um doce bem estar, d'um gosar inalteravel de venturas suavissimas.
Magdalena f?ra educada esmeradamente, com todos os vivos cuidados d'um pae amantismo, mas sem o desenvolvimento, que mais tarde se desata em grandes exigencias, em superfluidades, em loucas ostenta??es. Jorge cercara-a sempre de todas as commidades, mas n?o a affastára nunca d'uma simplicidade abundante.
As amigas de Magdalena fallavam-lhe de bailes, das alegrias, dos ehthusiasmos de qualquer reuni?o d'este genero, ella respondia, fallando do seu piano, das musicas novas, das bellezas d'algum livro, das alegrias d'um passeio ao lado do seu pae.
E Magdalena vivia assim, contente, satisfeita, risonha e feliz, gra?as ao systema d'educa??o empregado por Jorge.
A affabilidade, porém, do nosso capitalista, n?o se limitava á sua filha, n?o se resumia só n'ella; estendia-se, como já dissemos, a todos os que tinham o prazer de o tratar, fossem grandes ou pequenos, pobres ou ricos.
Os proprios escravos eram os primeiros a estimal-o, porque n?o deixando de se fazer tratar por elles com o respeito devido, tambem os n?o olhava, como em geral, com olhos de despreso, nem os carregava d'asperidades, maus tratos e indifferen?a.
Jorge acolheu, pois, affavelmente os seus novos socios e dirigiu-se ao escriptorio, para resolver os trabalhos e negocia??es do dia com elles.
Leu-se a correspondencia, fizeram-se delibera??es, disposeram-se algumas transac??es de commum accordo.
Jorge tinha no negocio uma longa pratica de muitos annos. O seu modo de vêr as cousas era d'um alcance vasto.
Luiz e Americo ouviam-o attentos e tomavam as suas palavras como conselhos e li??o.
Depois de uma hora de conferencia o capitalista sahiu.
Luiz ficou entregue á escriptura??o e Americo passou ao armazem a dirigir o trabalho dos negros e caixeiros.
Os dois associados n?o mostraram o menor vislumbre do resentimento, nem das más disposi??es em que se achavam um com outro, na presen?a de Jorge.
Bem pelo contrario, fallavam, consultavam-se, e olhavam-se, como duas pessoas ligadas por estreitissimos la?os de amisade e de sympathia.
A presen?a de Jorge continha-os dentro dos limites do respeito. Além de que, qualquer d'elles se julgava culpado perante a propria consciencia. Luiz ainda podia alliviar a culpa com a ideia do sentimento que o dominava, do amor que lhe estava enchendo o cora??o. Americo, esse, n?o tinha uma unica appella??o.
Jorge voltou de novo ás duas horas e foi encerrar-se com Luiz no escriptorio. Conversaram por largo tempo, e quando ás tres da tarde sahiu para regressar á chacara, chamou Americo e disse-lhe:
--O senhor Luiz sahe amanh? no vapor das 8 horas para Macahé. Vai a negocios meus. Quando vier a correspondencia abra e dê as suas ordens como entender conveniente.
--Sim, senhor.
--Se até eu chegar, f?r preciso alguma coisa queira mandar-me aviso ao Botafogo.
--N?o ha de ter duvida.
--Adeus.
Apertaram as m?os e Jorge sahiu.
Americo exultou de contentamento com a inexperada sahida de Luiz. Eram, pelo menos, quatro dias de demora, e em quatro dias podia, pensava elle, conseguir derrubar o seu rival do throno aonde come?ava a sentar-se.
Luiz ficou triste com a noticia, pelo lado do cora??o. Assaltaram-o logo as saudades por Magdalena, e, sobre tudo, a ideia de que o mulato poderia aproveitar a sua ausencia para commetter alguma infamia.
Exultou, porém, pelo lado da consciencia, porque ia desempenhar uma miss?o, em nome d'aquelle, a quem devia amisade, estima, confian?a, e fortuna até.
Estava d'um lado o amor, do outro o dever.
A ausencia ia ser por poucos dias e uma voz intima lhe segredava ao cora??o, que havia de voltar a encontrar Magdalena, firme ainda no seu juramento, constante no seu affecto.
Luiz confiava na pureza dos seus sentimentos, e tanto bastava para crêr que um anjo bom havia de proteger a sua causa.
Demais, bem sabia elle que o cabinda olharia pela sua filha.
Todavia Luiz n?o queria partir sem annunciar a Magdalena a sua ausencia. Ainda tinha tempo.
No dia seguinte, ás sete horas, já elle andava de pé.
O mulato passára a noite a fazer e a desfazer planos. A ausencia do seu associado sorria-lhe fagueiramente. No entanto nada poude decidir positivamente, porque tinha a certeza de que Luiz tomaria todas as precau??es.
Além d'isto, um dos maiores obstaculos que se levantavam, em face de qualquer resolu??o tomada, era o negro, era o cabinda de quem tinha, sem duvida, muito e muito a receiar.
A ultima resolu??o foi a de esperar o curso das cousas.
O mais provavel era que Luiz mandasse alguem a Magdalena, e n'esse caso elle faria todas as diligencias para o evitar.
Luiz tambem n?o tinha outro recurso. Sahir sem avisar Magdalena n?o o fazia de certo, n?o podia fazel-o. Ainda se a demora fosse d'um dia! mas quatro pelo menos! Quatro dias era muito, sobretudo, para quem sente as primeiras saudades que s?o sempre mais dolorosas, mais profundas.
Tomou a resolu??o de escrever a Magdalena, mandando-lhe a missiva por um dos negros do armazem. Nunca o cabinda foi t?o desejado, nunca!
Escreveu, pois, e incumbiu um dos escravos de chegar ao Botafogo, logo que Jorge viesse da chacara.
ás horas convenientes despediu-se friamente do mulato, que já andava de vigia, e partiu para o local d'onde sahiam os vapores da carreira para Macahé.
Luiz levava a d?r das suas saudades e os receios d'alguma infamia do mulato...
ás nove horas entrava Jorge no armazem.
Americo, depois dos cumprimentos do estylo, e d'alguns cavacos sobre a correspondencia e negocia??es do dia, deixou-o no escriptorio e veio ao armazem.
Chamou os negros, interrogou-os a todos, perguntando se algum f?ra incumbido pelo senhor Luiz de ir ao Botafogo levar algum recado.
Um d'elles respondeu que sim.
--A que? perguntou Americo.
--Levar isto á senhora mo?a.
--Deixa vêr.
E tomou das m?os do negro a carta fechada, que este lhe apresentou.
--N?o é preciso ires, eu mandarei lá.
E guardou a carta, contente, n'uma alegria visivel, em que se traduzia o sentimento d'uma vingan?a quasi realisada.
O mulato era um infame, e esquecia-se de que a Providencia vela sempre pelos justos e pelos bons!
A grande quest?o d'Americo era, quando n?o conseguisse para si Magdalena, empregar todos os meios para que Luiz a n?o conseguisse tambem.
N'este desejo é que elle ia trabalhar, e, sobretudo, aproveitar os poucos dias d'ausencia do seu socio, que, a bordo do vapor da carreira, ia curtindo saudades, sempre com a imagem seductora e deslumbrante de Magdalena a povoar-lhe a vis?o, e a apparecer-lhe em tudo!