/0/10800/coverbig.jpg?v=5376acb3c8ffd8472dff92cf4d98cc3a)
O cabinda permanecia alli, como o verdadeiro crente, em face do altar do Christo crucificado.
Magdalena prendia-lhe os sentidos, absorvia-o completamente.
A cada respira??o, a cada ondula??o do seio da virgem, extremecia elle e abria mais os seus grandes olhos, n'uma express?o alternativamente de receio e de esperan?a, que ella acordasse.
Por fim, Magdalena estremeceu e levantou de subito o rosto formosissimo. O seu olhar meigo e deslumbrante foi encontrar o negro ajoelhado, com os olhos pregados n'ella.
--Ah! és tu cabinda?
--O negro, senhora mo?a!
--E que fazias ahi de joelhos?
--Olhava para a minha filha, que dormia...
--E que sonhava tambem, cabinda. Tu nunca sonhas, quando dormes?
--Sonhar? repetiu o cabinda. á noite, quando o negro se deita, e faz escuro em volta d'elle, o cabinda vê a sua senhora, que foi para a terra do Pai dos brancos; vê a senhora mo?a muito contente, com a cabe?a cheia de rosas lindas, e o senhor a dar muitos beijos n'ella. E o cabinda lembra-se, tambem, dos seus filhos e da sua companheira, e chora de noite lagrimas no escuro.
--Coitado!
--Oh! mas o cabinda é alegre, como o jacaiol da floresta, quando a sua filha ri e falla ao negro!
--Pois olha, meu amigo, estou agora muito triste... muito!...
E Magdalena ficou como que embebida n'uma ideia que a dominava, com o rosto em visivel express?o de melancholia.
--E que tem a senhora mo?a? perguntou o negro com anciedade e receio. O cabinda n?o a quer triste; as arapongas que chorem, quando o ca?ador as ferir.
--Nem eu sei o que tenho. Vamos andando que eu conto-t'o.
E tornando a prender as fl?res entre as folhas do livro, seguiu, acompanhada pelo negro, uma das aleas oppostas áquella por onde tinha chegado ao lago.
Magdalena ia vagarosa e pensativa; o negro, ao lado d'ella, caminhava abstracto de tudo, sem vêr mais nada.
Que magestoso quadro aquelle!
Magdalena era o anjo meigo e deslumbrante, da mocidade cheia d'explendores, a que sorriem todas as esperan?as, e para o qual todos os horisontes s?o vastos, largos e floridos!
O cabinda era o velho escravo, fiel e dedicado, capaz de tudo para salvar a vida dos seus senhores, saltando de contente com dois affagos e humilhando-se submisso á menor reprehens?o.
Os dois caminhavam a par.
Era n'essa hora mysteriosa dos esponsaes do dia com a noite.
Por sobre as suas cabe?as arqueava-se, verdejante, o docel das jaqueiras, d'um lado, e dos ramos frondosos das mangueiras, do outro. As aves já se haviam retirado aos gratos asylos.
--Tu sabes o que s?o saudades, cabinda? perguntou Magdalena ao negro.
--Saudades? repetiu elle, scismando na resposta.
--Sim.
--Sei, senhora mo?a. é ter o negro a alma a doer muito, como á pomba rola, quando lhe tiram os filhos, ou o parceiro do ninho do matto.
--é isso. Pois olha, eu tenho saudades, e n?o sei de quê. Sinto a alma a pedir-me uma coisa, que eu n?o comprehendo, e arde-me o cora??o em desejos loucos, mas desconhecidos. Quero, e n?o sei o que quero; desejo, e pergunto o que desejo. N?o me falta nada, porque, gra?as a Deus, sou rica; n?o ha vontade nem capricho que o papae me n?o satisfa?a, e, olha, apesar de tudo, n?o vivo contente. De tarde, sempre que chega esta hora, sinto um peso na alma, que eu n?o sei de onde vem, nem para quê. De noite, ent?o de noite, sonho muito e tenho saudades d'esses sonhos quando acordo. Vejo ao meu lado um rosto que me sorri, uns labios que me dizem coisas que ninguem ainda me disse, coisas bonitas, doces e encantadoras; umas m?os que me fazem festas, que me alisam os cabellos e m'os enfeitam de flores, e uns olhos que me olham muito, e que penetram até dentro do meu cora??o. Mas depois acordo, desapparece o sonho, vejo-me só, e tenho saudades, cabinda...
O negro, se bem que nada comprehendera de tudo quanto lhe dissera Magdalena, é certo que o havia adivinhado, porque acudiu rapidamente, apenas ella acabou:
--é a alma do branco que vem fallar á alma da senhora mo?a.
--Do branco? perguntou Magdalena, com ar de quem n?o comprehendia.
--Do branco, sim. A on?a do cannavial e o jabirú das lag?as teem o seu parceiro, como tinha o cabinda, quando veio da sua terra. E a senhora mo?a, vê o branco nos sonhos, como o cabinda vê a sua parceira e os filhos, mas o branco n?o apparece.
--N?o te entendo, cabinda, acudiu Magdalena, scismando no que o negro lhe dizia.
--O mal da senhora mo?a é aqui, disse o cabinda, indicando no peito o logar do cora??o. O branco que a minha filha vê á noite, quando dorme, é que ha de vir cural-a.
--Como?
--N?o sei.
--Quando?
--Elle virá. O negro tambem tinha isso, lá, na sua terra. No matto, no cannavial, quando o negro andava á ca?a, e no rio, quando dormia dentro da sua can?a, o cabinda n?o tinha a sua parceira, mas o negro via-a sempre. E um dia a parceira do cabinda appareceu, e o negro n?o soffreu mais, nem tornou a chorar.
Magdalena continuou vagarosa ao lado do negro, mas visivelmente melancholica e pensativa, talvez com o que elle acabava de dizer-lhe.
Estava ella na idade em que o cora??o come?a a desabrochar as primeiras fl?res e a sentir os primeiros desejos. Tinha algumas vezes ouvido fallar d'amor ás suas amigas; vira umas alegres, tristes outras, umas cheias de enthusiasmo e ventura, outras soffredoras e melancholicas, e ella sempre indifferente a tudo, sempre sem lhes ligar outra importancia mais do que a que nascia da sua amisade. Nunca um homem lhe rendera uma fineza, nunca um homem lhe dardejára um olhar expressivo; e se algum o fizera, Magdalena ou n?o o viu ou n?o o comprehendeu.
Agora, sim. Agora, as saudades de que fallava; os sonhos que lhe floriam ás noites, ou lhe esmaltavam o repouso, eram os tra?os claros dos desejos, que tinha na alma e no cora??o, de amar e ser tambem amada, de gozar os dulcissimos effluvios do sentimento, que lhe irrompia no peito.
Tinham chegado assim ao terreiro, que havia na rectaguarda do palacete, para o qual se descia por uma escadaria de pedra, no extremo de uma vasta varanda.
Jorge de Macedo estava de pé, no topo das escadas, fumando um charuto, e n'uma attitude de quem esperava alguem.
Magdalena, apenas o viu, desatou a correr e exclamou:
--Ah! o papae!
O negro ficou só, e Jorge sorriu-se, dizendo:
--Olha que te can?as, doidinha!
A filha do cabinda transpoz rapida o espa?o que a separava de Jorge, e apenas se achou junto d'elle, fez dos bra?os um collar, com que lhe prendeu o pesco?o, e come?ou a cobril-o de beijos carinhosissimos, a que elle correspondia em visivel express?o de jubilo e de ventura.
Eram os beijos da flor ao tronco onde nascera! eram os affectos gerados pelos la?os mysteriosos do sangue!
Que beijos aquelles! que affecto se n?o desdobrava alli!
--Mausinho, que me deixou hoje jantar só, queixou-se ella com fingido agastamento.
--Tive muito que fazer, filha. Mas déste o teu passeio até ao lago, n?o?
--Dei, papae, acompanhou-me o cabinda.
O negro chegava n'este momento, diringindo-se a Jorge:
--A sua ben??o, meu senhor!
--Adeus, cabinda.
--E amanh??... perguntou Magdalena, sorrindo com inten??o.
--Amanh?...
--é dia de festa; faz o papae annos e havemos de jantar muito alegres! atalhou ella.
--Muito. E vais ter hospedes.
--Hospedes? interrogou com curiosidade.
--Sim. Convidei o guarda livros, e os caixeiros; vem toda a gente do armazem.
--Oh! que alegria vai ser a nossa, n?o é verdade, papae.
--Grande, minha filha, porque é de ti que ella vem.
E deu-lhe um beijo, onde ia impressa a sua alma e o seu amor de pae extremosissimo.
Magdalena foi, porém, a pouco e pouco, perdendo aquella alegria com que havia acariciado Jorge, e tornando-se pensativa, absorta, e como que esquecida de onde estava e com quem estava.
O negro, do extremo opposto da varanda, tinha os olhos fitos n'ella com a avidez de quem parecia estar estudando-a.
Que nuvens, embora tenues, eram as que assombravam melancholicamente aquelle rosto t?o formoso d'aquella mulher anjo?
Que pensamentos lhe agitavam a mente, para que soffresse aquella passagem suave do alegre para o triste?
O cabinda havia-lhe dito que o branco a curaria, e ella pensava n'isso, lembrando-se dos hospedes que ia ter ao jantar, no dia seguinte.
Eram as alvoradas do cora??o; eram os pressentimentos do que ha de vir!
E scismando n'isso, ia esquecendo-se de tudo, quando Jorge a accordou:
--Esqueces o piano, Magdalena?
--N?o, papae; esperava por si.
--Vamos, ent?o.
--Vamos.
E tomou a m?o a Jorge, e recolheram-se ambos alegres e contentes.
Pouco depois, o piano gemia, debaixo dos formosos dedos da filha do cabinda, uma reverie de deliciosissimas harmonias, d'estas que levam presas, nas suas azas, o espirito até ao céo.
Jorge ouvia-a n'um extase.
Sentado nas commodas almofadas d'uma cadeira estofada, tinha os olhos pregados no rosto da filha mimosa, da filha, que era o seu anjo, o seu encanto, a sua vida, a sua felicidade mais completa, mas alava o espirito ás regi?es celestes, nas ondas d'aquella musica, onde, n'uma especie de mystifica??o, estava vendo a sua adorada Beatriz, a esposa queridissima, que a morte desapiedada lhe arrebatára t?o cedo dos bra?os!
O cabinda, no entanto, jazia no extremo da varanda, que deitava sobre o terreiro, dizendo comsigo a meia voz:
--Os brancos veem amanh?; o mulato virá tambem. Cabinda, a senhora mo?a é tua filha!