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Eram tres horas da madrugada, quando Magdalena se retirou da janella, onde a vimos t?o scismadora, t?o embebecida na contempla??o silenciosa da rainha da noite, que, apesar de bem alta, ainda ia vaidosa a mirar-se nos crystallinos espelhos dos lagos adormecidos, e gosando as suaves emana??es das flores dos jardins.
Nunca a formosa virgem tivera uma noite de sensa??es t?o violentas, esmaltada de tantos receios e de tantas esperan?as, de tantas rosas e de tantos espinhos.
A imagem de Luiz, ora lhe sorria cariciosa, meiga, e cheia de bondade, ora lhe apparecia gelada, fria, e grave, com todos os tra?os d'uma indifferen?a verdadeira.
Eram as alternativas do amor; era esta serie de contrastes e antitheses que o constituem, e de que elle proprio se alimenta, inflamma e vive!
Todavia, n'esta opposi??o de ideias, de phantasias, d'aspira??es, que a dominavam e agitavam, o predominio era inquestionavelmente para o pensamento da felicidade, que t?o magicamente lhe sorria no amor de Luiz.
O amor de Luiz!...
Aquelle sentimento era o céo com todas as suas bellezas; com as harmonias dulcissimas das harpas afinadas dos seus anjos; com todos os cambiantes das luzes formosas dos seus astros scintilladores!
E foi n'este diliciosissimo vago d'uma esperan?a de ventura que Magdalena adormeceu.
Os olhos, aquelles olhos sempre formosos, cederam por fim ao pêso da somnolencia, e deixaram-se velar docemente pelas palpebras, quasi transparentes.
N?o cessaram porém as ondula??es do seio, que estava sendo o leito d'um vasto oceano d'amor.
N?o cessaram, n?o, porque ainda se prolongava o sonho, em que, inteiramente embebida, se havia demorado na janella, d'onde sahira momentos antes.
A formosa filha do cabinda estava vendo diante de si vastissimas campinas de flores perfumadas; estava ouvindo umas harmonias alegres, como nunca ouvira; tinha por cima o céo azul, limpido e sereno dos dias tropicaes, e em baixo, na terra, a esteira matizada de flores, que a m?o d'uma fada branca, aeria e vaporosa, andava espargindo prodigamente.
ó mocidade! como s?o magicos os teus sonhos, quando te perfumam o seio largo, as emana??es balsamicas dos roseiraes floridos do amor! Como é deslumbrante e querida a imagem, que te faz palpitar o cora??o, gravada nos raios prateados de cada estrella, reflectida na superficie serena de cada lago, envolta nas harmonias suaves e doces do cahir da agua de cada cachoeira, presa nas mil palhetas douradas do sol de cada esperan?a, e engastada na muldura valiosa das perolas de cada cren?a!
Sonha, Magdalena, sonha! Na tua idade, os sonhos s?o vida, a vida é ventura e a ventura parece n?o ter fim!...
Sonha, em quanto te doura a fronte, e se reflecte no negro assetinado dos teus formosos cabellos, o sol vivificante dos teus vinte annos t?o perfumados.
E Deus queira que um dia n?o tenhas de beber a sicuta das desillus?es, o calix amargo e mortal do fel da desventura!
Desponta propicia a estrella do teu amor; prophetisam-te alegrias os canticos suaves, que te embalam o somno leve... Dorme, virgem; dorme, sonha, vive, e gosa!
E Magdalena sonhava.
N'aquelle momento, havia, porém, dois homens que a estavam vendo com olhos d'affecto formosamente sincero, mas inteiramente distincto.
Eram Luiz, que n?o podera conciliar o somno, e o negro, o cabinda, que havia accordado a pensar na felicidade da sua filha.
As seis horas da manh? já o sol dourava, com todo o seu deslumbrante explendor, a vegeta??o opulenta das mattas virgens, e as florinhas mimosas dos jardins vicejantes. As aves mandavam ao céo, nas azas invisiveis da vira??o do sul, o seu cantico matinal de gra?as e louvor. Sorria-se inteira a natureza, n'um sorriso que era como um hymno aben?oando o Creador!
O cabinda andava já, contente do seu trabalho, entregue á limpeza das folhas seccas, cahidas, durante a noite, em volta do lago, onde Magdalena costumava ir sentar-se, pensativa, no fim de cada tarde.
E t?o embebido andava o negro, que nem viu a sua filha approximar-se d'elle, surgindo d'uma das aleas da chacara, orlada de mangueiras, cajueiros e pitangueiras.
--T?o entretido, cabinda! disse Magdalena approximando-se.
--A minha filha! exclamou o negro, depois de se volver admiradissimo, com um sorriso d'intima alegria a pairar-lhe no semblante.
--Ent?o? volveu ella. Julgas que só tu te levantas com o sabiá das laranjeiras?
--O negro n?o esperava a senhora mo?a, n?o. A sua ben??o.
--Quero que vás á cidade.
--Ao branco? perguntou elle com rapidez.
--Sim. Vais levar este bilhete ao senhor Luiz, mas has de entregal-o só a elle, ouviste?
--Descance a minha filha, o negro vai já.
E depois, como recordando-se d'alguma coisa passada, o negro continuou:
--Oh! o cabinda bem dizia, que o branco dos sonhos da senhora mo?a havia de chegar. é elle; o branco veiu e a minha filha gosta do branco.
--Ah! suspirou Magdalena, enlevando-se nos sonhos do seu affecto. Ah! se tu soubesses como eu o amo!
--é como o cabinda á sua parceira e aos seus filhos que lhe tiraram.
--Mais, mais ainda! Tu n?o imaginas como eu sou doida por elle! Pertence-lhe a minha vida, o meu cora??o, a alma, o pensamento! Sou toda d'elle, e n?o poderia viver sem elle. Tu, oh! tu n?o sabes o que eu sinto, n?o! Penso n'elle de dia, de noite, a toda a hora, e sempre! Tu contentas-te em ter saudades da parceira, que te tiraram, dos filhos de que te separaram; e eu morria se elle me faltasse, morria, sim!
--E o branco tambem quer muito á minha filha, muito; acudiu o cabinda, a quem o enthusiasmo de Magdalena, havia enthusiasmado tambem.
--Quem sabe? murmurou ella, n'uma express?o d'alguma duvida.
--O negro vê. Hontem, no jantar, os olhos do branco buscavam os olhos da senhora mo?a. Eram como a jurity do matto, a chamar a companheira entre as folhas do capim...
--Isso era hontem, mas agora?... respondeu Magdalena com melancholia.
--Agora, senhora mo?a, o negro vai e hade trazer alegrias á sua filha.
--Vem depressa, ouviste?
--O negro n?o tardará.
E o cabinda guardou o bilhete que Magdalena lhe déra, e partiu apressado, volvendo-se, de quando em quando, para traz.
No seio da formosa virgem havia uns alvoro?os immensos. Era a esperan?a que os originava, a dourada esperan?a, em que Magdalena ficava, de que depois das suas noticias, que mandava a Luiz, este lh'as mandaria tambem, n'um repetido protesto de grandissimo affecto.
Subiu.
Ao chegar ao topo da escada, encontrou-se com Jorge.
--T?o cêdo cá por fóra, filha! exclamou elle, um tanto admirado ao vêl-a.
--Estava uma manh? t?o bonita! vim vêr as minhas fl?res.
E beijou-lhe a m?o e abra?ou-o, cariciosa e meiga.
--E t?o cêdo as deixas, doidinha!
--Já as vi, já lhes fallei, papae.
--E agora que vaes fazer?
--Uma visita a outro amigo... disse ella, sorrindo.
--Pois ainda tens mais affei?oados, Magdalena?
--Se tenho, papae! disse ella, suspirando. Ent?o o meu piano?
--D'aqui a pouco esqueces-me de certo. Se vaes assim a repartir o teu affecto, n?o deixas no teu cora??o um cantinho para teu pae!
--Oh! o logar do papae ninguem o tira, ninguem!
--Nunca?
--Nunca!
E Magdalena prendeu-o pelo pesco?o, sorrindo com meiguice, e imprimiu-lhe na face dous osculos purissimos.
Jorge acolheu-os como os paes acolhem os beijos dos filhos, quando os paes s?o paes, e os filhos n?o degeneram.